sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

QUALIFICAÇÃO DA MÃO DE OBRA NA CONSTRUÇÃO CIVIL





O setor da construção civil brasileira, construído artesanalmente pelas mãos de operários majoritariamente analfabetos e sem qualificação técnica, paga o preço de anos sem investimentos em formação de pessoal. O mercado demanda um contingente de mão de obra expressivo para dar conta do volume de obras, mas há necessidade de trabalhadores habilitados.

Um estudo realizado pela Poli-USP (Escola Politécnica da Universidade de São Paulo) e encomendado pela Abramat (Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção) revelou as dimensões do desafio: para que a totalidade dos trabalhadores da construção (entre formais e informais) tenha uma educação compatível com os quatro primeiros anos do ensino formal é preciso capacitar meio milhão de pessoas. Esse número sobe para mais de 1,1 milhão quando se pensa em cumprir a lei, garantindo o ensino fundamental ou os oito primeiros anos de ensino dos operários da construção. Segundo o professor Francisco Ferreira Cardoso, do Departamento de Construção Civil da Poli-USP, 80% dos trabalhadores do setor têm menos de quatro anos de estudo e 20% são analfabetos funcionais. Para além da sala de aula, o cenário também é preocupante: apenas os trabalhadores formais - que hoje, de acordo com dados do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), representam 30% do total dos 4.743.095 milhões de pessoas empregadas pelo setor - receberam algum tipo de treinamento técnico. O restante, que representa 72,4% do mercado de trabalho (ou os quase 3,5 milhões de trabalhadores), opera no sistema informal, não contribuem para a Previdência Social e nunca receberam nenhum tipo de treinamento ou qualificação. Para piorar, o alto índice de rotatividade do setor impede uma formação continuada, já que em média 55% dos funcionários ficam menos de um ano na mesma empresa e em torno de 30% permanecem até seis meses.

"A abertura da economia e a introdução de inovações no processo produtivo criaram um novo paradigma da construção, que rompeu com o método artesanal de construir e inaugurou uma forma mais racionalizada e industrializada de trabalhar, pautada na construção seca e em obras sistêmicas", diz Roberto Mingroni, consultor da Fundação Vanzolini.

As tubulações de cobre dos sistemas hidráulicos começaram a conviver com as de polipropileno, que chegam prontas no canteiro. O mesmo aconteceu com as fachadas que, quando pré-moldadas, passaram a ser construídas fora da obra. Paredes divisórias de blocos ganharam a concorrência dos painéis de gesso acartonado, o drywall, apenas para citar alguns exemplos (veja boxe). As gruas, que antes eram absorvidas quase exclusivamente pelo setor de infra-estrutura, também passaram a ser vistas nos canteiros das edificações carregando paletes com blocos embalados.

Paralelamente, o acirramento da concorrência forçou as empresas a promoverem mudanças profundas em seus processos de gestão e a aprimorarem seus desempenhos técnicos/econômicos. Como consequência, começaram a despontar sistemas de gestão da qualidade compatíveis com a norma ISO 9000, como a NR-18 e, mais tarde, iniciativas como o PBQP-H (Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade do Habitat), que tem como objetivo "elevar os patamares da qualidade e produtividade da construção civil, por meio da criação e implantação de mecanismos de modernização tecnológica e gerencial".

Entretanto, esse cenário, apesar de exigir profissionais com conhecimentos e atitudes bastante diferentes das qualificações formais requeridas pelas organizações do trabalho anteriores aos novos paradigmas produtivos, não foi acompanhado pela qualificação da mão-de-obra, que agora precisa responder às exigências de qualidade, produtividade, redução de perdas e desperdícios, controle e sustentabilidade.

O operário braçal está perdendo gradativamente seu espaço nos canteiros, que agora, cada vez mais industrializados, requerem a figura do montador. Se por um lado essa mudança gradual promovida pela industrialização e intensa automação exige um profissional mais qualificado, por outro revela uma tendência de encolhimento da base da pirâmide da construção.

De acordo com Roberto Mingroni, da Fundação Vanzolini, hoje se constrói um mesmo empreendimento com no mínimo um terço ou menos da quantidade de operários que se necessitava há dez anos. Geórgio Vanossi, diretor de engenharia da Setin, confirma: "Para construir uma fachada no modo convencional, por exemplo, calcula-se uma média de 80 itens ou tarefas, entre serviços, equipamentos e pessoas. Já com fachada pré-moldada, não estimo mais do que três etapas".

De acordo com ele, apesar dos processos produtivos facilitarem o trabalho operacional, uma vez que muitas peças já vêm prontas da fábrica, exigem um controle muito maior. Ele exemplifica: a métrica passa a ser o milímetro e não centímetro; a organização é sistemática; a tolerância ao risco é diminuta; as soluções de quebra-galho, como quebrar parte de um tijolo ou bloco para adaptá-lo à alvenaria, são proibidas; os materiais já vêm nas medidas previstas pelo projeto, que deve ser seguido à risca, e as ferramentas são mais sofisticadas.

É claro que em se tratando de um mercado que abriga cerca de 172 mil empresas informais, esse cenário de automação é ainda uma realidade restrita à elite da construção, ao mercado formal ou apenas às grandes empresas. Basta um passeio entre os empreendimentos para encontrar tanto o mestre-de-obras analfabeto e que executa seus projetos segundo a tradição, como aquele que trabalha com um laptop e tem plenos conhecimentos de gestão e administração da obra. Mas também é verdade que em menor ou maior proporção, o sintoma está presente em todo o setor.

Mas, em geral, as estratégias de qualificação ou são superficiais ou atingem um universo muito restrito, configurando-se como ações isoladas. Há pouquíssimas iniciativas que, de fato, recuperam a má formação cultural e educacional do profissional, que acaba tendo acesso apenas a capacitações da ponta da cadeia, de um ou outro sistema construtivo.

O professor Francisco Cardoso, da Poli, defende que é preciso aproveitar o ambiente favorável da construção e "investir na educação e formalização desses trabalhadores da construção que operam sem registro ou entidade representativa, dando a eles a mínima competência para fazer um planejamento, administrar seus serviços, eventualmente ter empregados, reduzir desperdícios e, enfim, transformá-lo numa espécie de microempresário".















 


 

 
 
Para Melvin Fox, da Abramat (Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção), a solução é a divisão de responsabilidades. De acordo com ele, para que o setor crie oferta de mão-de-obra especializada, é preciso compor um trabalho articulado entre entidades governamentais - por meio do Ministério da Educação, das Cidades, do Trabalho e do Desenvolvimento -, o sistema S (Sesc e Senai) e o setor privado, representado pela indústria de materiais, construtoras, incorporadoras etc.

Antonio Carlos Gomes, diretor do Sinduscon-RJ, atribui ao governo a responsabilidade pela qualificação profissional dos desempregados. Para ele, o governo tem instrumentos e recursos para a criação de novas oportunidades de trabalho e de renda, além do Senai, que tem recursos praticamente tributários, incidentes sobre folhas de pagamento, e previstos em lei. Já as empresas, mesmo que muitas delas estejam hoje assumindo a responsabilidade pela qualificação e formação de sua mão-de-obra, em geral, atuam no campo das "situações emergenciais ou dentro de rotinas de trabalho, mas não têm condições de dar conta da demanda", avalia Gomes.

Independentemente da atribuição de responsabilidades, o desafio da indústria como um todo é aumentar não apenas a quantidade, mas a qualidade do emprego no setor da construção, aprimorar a capacitação das empresas e da mão-de-obra e formalizar a mão-de-obra informal.

Sejam quais forem os caminhos trilhados para superação desses obstáculos, é consenso que o perfil da mão-de-obra da construção deflagra não apenas a precariedade do trabalho no Brasil, mas também a falta de planejamento, de organização, de uma visão estratégica e de uma política pública que transforme em ações aquilo que tudo mundo sabe: que a construção civil é, historicamente, um dos setores mais importantes da economia nacional por ser grande empregador de mão-de-obra e ter elevada participação na geração do PIB.


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